Seres humanos são organismos que agem, interagem e modificam seu modo de pensar e agir a partir da concepção que possuem sobre si próprios. A partir deste conceito, estabelecido há mais de quarenta anos pela filósofa Amelie Rorty, apresentamos um método de criação de camadas de personagens a partir da importância de cada coadjuvante e antagonista para a história. Em cada sessão de jogo em que um desses personagens significativos aparece na aventura, um novo elemento sobre ele deve ser apresentado pelo narrador (veja abaixo em Como Explorar as Camadas nos Preparativos da Crônica). Dessa forma, suas personalidades vão se revelando mais complexas ao longo das aventuras. Essas informações podem surgir de várias formas, de rumores ditos sobre eles, ao que é dito pelos próprios, até as próprias conclusões tiradas pelos protagonistas, servindo como um quebra-cabeças que aos poucos revela quem é o personagem.
Sete Camadas de Personalidade
A partir dos elementos abaixo, a cada sessão o narrador pode apresentar uma nova camada sobre os coadjuvantes e antagonistas presentes naquela aventura. Quanto mais um desses personagens aparece, mais elementos sobre ele são revelados aos poucos. A ordem apresentada abaixo segue como sugestão na apresentação das camadas, do mais genérico ao mais específico: Estereótipo, Propriedade, Motivação, Fama, Passado, Intenção e Identidade.
Estereótipo: Cada mundo possui uma gama de arquétipos reproduzidos à exaustão que facilita a compreensão sobre personagens, objetos e lugares. Quando o narrador descreve que um cavaleiro entra na taverna, logo imaginamos um homem numa cota de malha ou armadura de batalha e uma espada na cintura entrando num salão onde uma série de pessoas estão conversando e bebendo. A partir destes modelos é possível presumir pelo lugar-comum quais são as outras camadas.
Propriedade: É o que este personagem possui, e em contrapartida o que (ou quem) possui o personagem. Vai além do equipamento que carrega ou suas terras, alcançando também a forma como ele se relaciona com suas posses.
Motivação: É o que direciona as ações de um indivíduo e engloba conceitos tão diversos como medos, anseios, desejos, vontades, esforços e sonhos. É o impulso que leva à ação e a atração que o une a outros parecidos com ele. Já foi apresentado aqui.
Fama: São as informações sobre o personagem que chegam mais rapidamente aos outros. Muitas vezes são infundadas e mentirosas, mas nunca à toa, pois elas surgem como reação da sociedade (ou de terceiros) a determinadas ações ou à sua aparência. Se alguém tem a fama de ser mau, é por que pelo menos para alguém dá a entender ser assim.
Passado: Diferente da Fama, são as informações que dizem respeito ao personagem e a sua origem. Mais que isso, oferecem a sua perspectiva sobre elementos externos, que também pode esta errada por surgir de influências que podem fazê-lo acreditar em algo que não é verdade.
Intenção: Mais do que a Motivação que direciona seu comportamento, são os objetivos pessoais que o personagem põe em curso e os planos tomados para alcançá-los. Apenas personagens bastante significativos possuem intenções muito bem estabelecidas, pois uma vez que são apresentadas costumam ser postas à prova uma ou mais vezes.
Identidade: É tudo aquilo de um personagem que vai contra o seu arquétipo ou o que aparentemente pode se imaginar que ele queira. Estabelece com mais detalhes seus critérios, muitas vezes explicados pelo seu Passado ou pela sua Intenção. Pode-se dizer que é o que torna o personagem único.
As camadas apresentadas de um personagem não precisam obedecer a ordem acima, pois o importante é que os elementos sejam variados entre os apresentados. Sem uma boa riqueza de antecedentes, um coadjuvante ou antagonista pode parecer limitado como um figurante.
Como Explorar as Camadas nos Preparativos da Crônica
Ao preparar os personagens-chave para a sua história em ‘Coadjuvantes e Antagonistas’ na Ficha de Crônica, o narrador deve escolher entre dois e quatro deles para escrever com mais profundidade. Para cada um, sugerimos listar entre seis a dez informações que tratem sobre diferentes camadas de personagem, para apresentar quando o personagem aparece ou é mencionado, geralmente uma informação a cada sessão funciona nas crônicas mais longas. Algumas podem envolver segredos que só serão revelados mais tarde na crônica, mas elas devem estar anotadas para servir como ases na manga do narrador, que poderá apresentar aos jogadores nos momentos mais propícios da aventura (especialmente no final da sessão se a informação criar uma Reviravolta).
Apresentamos como exemplo três personagens da crônica O Estandarte do Corvo: Runa, Cnut e Guthrum. Como esta é uma aventura de uma sessão apenas, apresentamos seis informações para cada um deles, mas nenhuma essencial para o prosseguimento da narrativa. O narrador pode aproveitar determinados momentos importantes para ensinar mais sobre eles durante o jogo.
Runa, a Bela
♦ Com o desaparecimento do Iarl Ingvar, a tradição diz que depois de um ano e um dia, se não houver um guerreiro disposto a tomar o poder pela força, a agora viúva deve escolher um pretendente para tomar seu lugar como líder (Arquétipo).
♦ Governando com pulso firme na ausência do marido, Runa acredita ser merecedora da posição de regente de Bjornvärg. Depois de se livrar de Cnut ela pode muito bem tomar um marido como marionete e continuar no poder (Propriedade).
♦ Runa se orgulha da paz trazida pelo marido desaparecido e agora dado como morto. De certa forma, ela se sente responsável por manter esta estabilidade, alcançada há muito custo pelos dois nos últimos vinte anos (Motivação).
♦ Querida pela população, inclusive pelos antigos guerreiros mais próximos do marido, que agora não permitem que outro homem tome o poder pela força, há quem tema que ela possa ser pressionada a casar com Cnut para consolidar o poder (Fama).
♦ Pressionada, mas incapaz de ceder à proposta de casamento de Cnut, Runa aposta no sucesso dos heróis para descobrir algo sobre o desaparecimento de Ingvar para que possa ganhar tempo e escolher um novo pretendente (Intenção).
♦ Diferente de todas as mulheres que conheceu, Runa pela primeira vez sentiu nos últimos meses o gosto de governar uma cidade por si própria, e está disposta a tudo para continuar como regente de Bjornvärg (Identidade).
Cnut, o Bruto
♦ Apenas homens de berço nobre com influência na cidade podem se candidatar como pretendente de Runa, e os outros que atendem os requisitos devem dinheiro para sua família. Como sempre teve tudo, sempre foi rude e vingativo (Arquétipo).
♦ Não é apenas conhecido por ser um péssimo homem, mas sua família parece estar por trás de todos os abusos e provações que os mais necessitados estão passando em Bjornvärg. Todos de seu sangue são mau vistos pelo resto da cidade (Fama).
♦ Cnut se considera o próximo governante de Bjornvärg e no total direito de casar com Runa. Se isso não acontecer será a primeira vez que será contrariado num aspecto tão importante da sua vida (Propriedade).
♦ Como todo homem perverso, está sempre cercado de bajuladores e capangas vis como ele. Seus guerreiros cometem as atrocidades que acham que podem, desde que respeitem os limites dados pela sua família (Motivação).
♦ Disposto a tudo para garantir que Runa se torne a sua esposa, Cnut pode tentar se integrar aos heróis na busca pelo Iarl Ingvar para tentar se livrar dele caso por alguma razão tenha sobrevivido e trazido de volta (Intenção).
♦ Apesar dos esforços para se tornar Iarl de Bjornvärg, Cnut não conseguirá se sentir seguro para governar sem a assessoria de seus familiares, pois no fundo ele é extremamente covarde (Identidade).
Guthrum Istvanson
♦ Como todo iarl das aldeias escondidas entre os fiordes dos Norses, Guthrum governa numa comunidade de onde pouquíssimas histórias chegam para o resto do mundo. Sabe-se muito pouco ou nada sobre ele (Arquétipo).
♦ As histórias que se contam sobre Guthrum é que na sua juventude ele foi um grande líder de saques realizados tanto nas terras dos saxões, como dos francos e rus. Sua habilidade com a espada é renomada (Fama).
♦ Quem consultar os iarls que encontrar pelo caminho pode descobrir que no passado Guthrum cometeu um grande erro e foi punido pelos outros lordes a perder todos os navios e construtores de navios que tinha à sua disposição (Passado).
♦ A perda dos navios e construtores teria feito Guthrum sentir que o seu destino grandioso foi roubado pelos outros lordes. De alguma forma sente que é preciso recuperar poder para voltar a ser grande novamente (Propriedade).
♦ Disposto a tomar o navio do Ingvar para si, Guthrum imagina que poder esconder o seu crime até que chegue o verão e finalmente possa voltar a saquear as terras de alguma das vítimas dos nórdicos (Intenção).
♦ Ao contrário dos outros iarls, Guthrum sente que está predestinado a ser mais rico e poderoso do que qualquer outro antecessor seu jamais foi. É capaz de tudo para seguir esse caminho que o levará ao trono dos Norse (Identidade).